17.1.23

Desejos

Começou bem cedo. tinha poucas semanas de vida quando dei de cara com o que seria o meu maior desejo não fisiológico. logo após saciada a fome, relaxava de barriga para cima naquela prisão a que chamavam de berço, mas que naquele momento era suficiente para conter meu mundo consciente e imediatista. naquela época eu mal conseguia me mexer. minha coordenação era quase aleatória e eu estava nas primeiras fases do raciocínio, ainda varrendo as sinapses com a lógica binária da causa-efeito, de estar ou não com fome, de estar ou não com sono, de tentativa e erro, de ação e reação. um-zero, ligado-desligado. é assim que aprendemos desde que nascemos, por instinto, por tentativa e erro, utilizando o gatilho que alterna do estado zero para o estado um, que tem o poder de nos trazer comida e conforto, trazer um banho, uma música de ninar e tudo o que é bom e sagrado. essa chave primordial, como se sabe, é o choro mais estridente que conseguimos fazer.

 

Bem diferente da noção de mundo que tivemos no berço anterior, dentro do Ser Supremo, uma caverna que não achava nem pequena nem grande, mas completa em si, pois não conhecia nada além. aquilo era tudo, não existia o 'lá fora', não havia dualidade, não havia zero e um, havia apenas a singularidade do todo e nada ao mesmo tempo. eu e a casa éramos o Todo.

 

Em poucos dias após a grande saída, já temos consciência do poder do berro e começamos a usá-lo para outros objetivos além do raciocínio binário da necessidade fisiológica básica. pois bem, era naquele momento de estado zero, saciado, plenamente satisfeito em minha existência e feliz, deitado sobre meus lençóis perfumados, que via dançar vagarosamente além do meu alcance, lá no alto do céu, pequenas formas, ainda nubladas, aninhadas em círculo, cadenciadas sob uma música agradavelmente hipnótica que emitia uma ordem subconscientemente clara: suas pálpebras estão pesadas, meu querido, fecha teus olhos e durma! e eu sonhava com aquelas imagens, com aquela música, com aquilo que ainda não sabia de onde vinha, nem o que era, mas que eu definitivamente gostava.

Quase sempre quando eu acordava estava em "estado um" de fome e disparava novamente o gatilho do berro: hora de comer. nesse momento precioso, o momento de ser suspenso pelas mãos do Ser Superior e de ser retirado do berço para a amamentação, meu choro cessava, por um breve período, o suficiente para me concentrar e fazer meus olhos resvalarem de lado para fisgar de relance as formas coloridas que, devido à súbita proximidade, elas pareciam mais nítidas e mais lindas e mais desejadas.

E então fui crescendo. primeiro consegui sustentar o próprio peso da cabeça, depois levantei o tronco com a força dos braços, e logo estava coordenando o movimento dos braços com os das pernas e logo estava segurando as barras do berço e ficando de pé... de pé, olhava para cima e lá estava o carrossel, lento, cadenciado, caleidoscopidal de formas e cores e músicas oníricas que lançavam morfina em meus olhos. à medida que ia crescendo, controlando melhor os movimentos do braço, conseguia por vezes triscar com a ponta dos dedos os objetos que compõem esse carrossel. lembro como foi extasiante poder triscar meu objeto de desejo pela primeira vez. foi tanta emoção que não chorei mais por comida, chorei por ele.

Vale ressaltar que somos criaturas viciadas em estímulos. se você não sabe, nascemos com os sentidos misturados, ou seja, o som pode ter cor, as cores e formas podem emitir sons e sabores e vice-versa, o que torna as experiências bem mais interessantes.

Pausa. longos e estimulantes dias se passaram, estou maiorzinho e minha visão menos borrada. vejo com mais nitidez as formas carinhosamente curvilíneas dos objetos pendurados na estrutura superior do berço. disseram-me que são peixinhos. muito lindos e sedutores. o prazer de passar horas mirando-os é suplantado aos poucos pela ansiedade de tocá-los e mordê-los, e o desejo crescia mais e mais. e então, com um movimento braçal rápido interagi com o objeto e numa explosão de felicidade finalmente consegui tê-lo comigo no berço, cheirando, mordendo e dormindo abraçado com os peixinhos, sonhando com os peixinhos, mas dessa vez sem música e sem movimentos, pois separei os peixes da nave-mãe que os fazia girar e tocar aquela música que hoje já soa irritante. e aí uma nova experiência me ocorreu, logo agora que eu finalmente o tinha, a curva de interesse declinou rapidamente e meu desejo saciado se transformou em tédio. o maior desejo da minha vida se transformou em tédio em questão de minutos! mas aí um Ser Supremo me entregou um novo e fascinante objeto...


**

Desde pequeno nos ensinaram a compreender e dominar nosso corpo físico, mas pouco ou nada nos educam sobre a mente e o domínio da nossa consciência. E assim, dia a dia, ano após ano, década após década, crescemos e morremos aprisionados aos sentidos. E é justamente por isso que somos facilmente manipulados por ilusionistas. 

(22/01/2020)

16.2.13

ALL IN


Telectac CLAK!

De tempos em tempos – não se pode dizer exatamente quais – um irritante barulho preenche a sala de um pobre casebre cujo velho morador sente narcísico prazer em explicar sua origem: “é meu cuco decodificador”, e aponta para uma engenhoca pendurada na parede, com suas engrenagens às mostras, suas válvulas e bojos de vidro e fluidos leves em seu interior. A julgar pela empolgação, foi ele mesmo quem a construiu. Lembra bem de longe uma estranha ampulheta. “Ele equaliza algebricamente a topologia interna da casa com a externa... Sabe, um relógio normal não funciona aqui”, explica, em vão, o velho de pele pálido-cinza e traços ornamentais, cujas rugas e sulcos dérmicos desenham curvas arabescas na face. Além de vestir um turbante, pinturas e maquiagem preta nos olhos completam o semblante árabe, descolado dos antigos califados mouros.  Visto de fora, seu casebre mágico é apenas uma palafita que adentra o mangue miseravelmente. Por dentro, igualmente miserável, um espaço geniosamente embaralhado num complexo origami temporal onde nem o mais poderoso clarividente e visionário seria capaz de arriscar palpites. E isto é fundamental para a reputação da casa já que, além de mim, outras três pessoas estão ali para jogar poker.

Borges, um homem muito rico, acostumado a ter tudo na vida, tem inclusive um belo de um melanoma metastásico que lhe dá pouquíssimo tempo de ser; Rômulo, um jovem inusitado de olhos cadentes que desde nascença é carente de atenção, cresceu a base de doses homeopáticas de carinho e sofisticou-se em burocracia, conquistando certo respeito por esforço próprio; e Cropulius, advogado de sucesso cujo esporte preferido é cuspir latim. Ama tanto expressar um data venia tal quanto um sommelier proferir acerca de taninos e chardonays amanteigados.

Sobre uma pequena bancada corroída por cupins, meia garrafa de conhaque abastece o copo de todos, além de um narguilè pequeno cujas ervas formam um amálgama de sabores alucinógenos. O velho metastásico, entre uma baforada e outra, sorri em agradecimento a este momento de trégua. O anfitrião serve de crupier. Seu sotaque e aparência definitivamente denunciam sua origem, aparentando outrora um poderoso vizir. Sua existência milenar, entretanto, denuncia algo mais.

Telectac CLAK!

O jogo é agressivo, de apostas altas e ousadas. A certa altura, Borges, o moribundo, quase triplica suas fichas. Confiante e de sorriso faceiro, uma certa carta de um certo turn veio questionar a racionalidade probabilística e estimular o raciocínio espiralado de um belíssimo blefe – all in. Ele está blefando, ou apenas fingindo? Ou fingindo que está fingindo que está blefando? A excelência neste jogo está relacionada a quantas camadas se consegue aprofundar ao padrão de jogo dos adversários. Minha conclusão é que ele quer que acreditemos que ele esteja manipulando para que acreditemos que ele esteja fingindo que está blefando, ou seja, ele não está blefando. Cedo demais para desenhar perfis?

Tento vislumbrar impressões da próxima carta, reflexos do porvir, mas o origami do vizir confunde o traçado do tempo e limita nossa percepção. Tento identificar no velho microexpressões que denunciem algum receio, qualquer discreto repuxão no canto dos lábios, pequenas vibrações da pálpebra, breve dilatação da pupila, mas nada, o que vejo é um senhor relaxado e entorpecido. Desisto da mesa.

As quatro cartas abertas são 3♣ 3♠ K♠ 3♦. As tensões se elevam à ionosfera com o turn de três de ouros, dando pistas de quem tem dois reis nas mãos, um belo e inútil fullhouse diante de um vulgar four de três no qual supostamente o velho Borges brinca e delicia-se. Cigarros e charutos depositam cinzas aos montes e a fumaça se adensa de tal forma que seria possível tropeçar nela. O narguilé está agora com o crupier e os peixes mortos continuam a nos observar, um deles é Machaca-fish.

Após as desistências minha e do advogado, Rômulo, o ingênuo burocrata carente e inexperiente na arte do poker, paga todas suas fichas pra ver... Então, abrem-se as cartas. Borges começa a rir e tossir ao mesmo tempo, em êxtase, com seu (agora) evidente four. Rômulo continua inexpressivo, como quase sempre foi a vida toda. A última carta, o river, não muda o sentido da correnteza e Rômulo é derrotado com Carlos Magno e Júlio Cesar nas mãos. Borges maldiz seu oncologista e manda às favas seus cuidados médicos. Ao sair dali, milagrosamente seu câncer ter-se-á regredido. Cropulius dirige-se ao perdedor com seu jeito permanentemente cínico de ser - dura Lex sed Lex!

O Crupier pede silêncio e olha misericordiosamente pra Rômulo – todos olham pra Rômulo – que saca do bolso um envelope lacrado e endereçado e o entrega a mim. Por favor, é pra minha filha, diz.

O jogo de poker é o sumo, a quintessência, o extrato último da lógica perversa do egoísmo capitalista, onde só se ganha quando o outro perde. Só que aqui não apostamos dinheiro, não acumulamos ou perdemos riquezas; aqui apostamos nacos de vida. Ao segurar o envelope, senti uma estranha sensação de que aquilo tudo fora programado, como uma carta de despedida de um homem desesperado cuja consciência está prestes a dissolver-se. Os acontecimentos seguintes me causaram penosas náuseas.

Telectac CLAK!




4.8.09

Transeuntes

A curiosidade, alimentada por uma eterna coceirinha no juízo e com seu típico sadismo infantil, espia pela brecha do tempo aquele momento. Um momento qualquer. Analisa, observa um pouco e em seguida chama o inquieto para espiar junto. Este, por sua vez, agoniado por sua vontade irracional e primeira de fazer tudo sem filtros, cede fácil ao chamado da curiosidade e abre um pouquinho mais a porta para espiar. A surpresa, como sempre, grande parceira da curiosidade, aparece de repente, empurra o inquieto para dentro do momento e fecha a porta toda contente, deixando o coitado lá sozinho. A surpresa se desfaz em fumaça de perplexidade, a curiosidade continua a espiar para ver o que acontece e o inquieto demora a perceber que caiu numa armadilha. O momento, por fim, possui uma ótima chance de se divertir. :**


30.5.09

insignificante desejo de um insignificante qualquer (ou... Que Sede da Po##@!!)

quero uma experiência cujo principal ingrediente é o desespero.. e por excesso da falta de algo mais, acaba por entorpecer por inteiro. isso me agrada. quero um dia estar largado no meio de um oceano agitado e escuro. numa madrugada qualquer. nada por perto e nada longe, apenas eu e o mar sem horizonte, agitado, e o céu negro chuvoso, tempestuoso, frio, relampejante, impetuoso, com ondas fortes e tudo mais... quero sentir pelo paladar a água salgada que engulo sem querer, sentir pelo olfato o cheiro do vento rasgante e da chuva que arranha a pele e me fere pelo tato. sentir de fato o frio e as pancadas do mar. quero ouvir o som da água nervosa, da água que cai e que sobe pelos redemoinhos de ar, quero ver tudo isso nos breves momentos de um relâmpago que une as densas nuvens e forma belíssimos segmentos de luz. quero estar em um lugar onde a bússula perde seu norte, se perde do mundo, se rende à morte. um lugar entorpecedor.

..... e depois

fico à deriva, à mercê. sem responsabilidades, sem preocupações, sem poder. apenas aprecio. se é o fim não importa. então vem a calmaria e também vem o dia. e eu boiando no meio do nada, no meio de tanta água, me acabo em sede, tanta sede. que se há de fazer?

20.2.09

Ode ao orgasmo

Durante as carícias que correm curvas e – principalmente – das que curvam dentro, só há um mínimo pensamento por momento ritmado, curto e alto, pulsante de som e suor. Esse fixo contínuo, uno de corpo e mente, que a cada segundo desejado deseja-se também um final permanente, escorre em seu paradoxal prazer contido e termina, por uma fração de tempo, maior que si. Momentos que seguem além fazem virar pelo avesso o corpo nu. Involuntariedades esperadas. Êxtase cru. Diante do indescritível, em teus olhos, é delicioso testemunhar lampejos de pequenas explosões de supernovas.

15.4.07

Manifesto do Ser Medíocre

Salve os medíocres. O cidadão incolor, inodoro, insosso. O ser transparente, maleável, comprometido com sua insignificância e ignorante de sua real importância. Viva o herói morno, acostumado a ser vomitado – um grande nauseador. Não sejamos nem quente, nem frio; sejamos o que basta, sem esforço. Poupemos a voz. Bem-aventurados são os observadores, sempre com um passo atrás. Meros espectadores em cima do muro, pois do alto se vê melhor. Por menos radicalismos, menos personalidades fortes, menos anseios revolucionários. Só queremos a revolução do silêncio - a maior de todas. Perante tanto ruído, mudemos pela ausência. Sejamos maleáveis, flexíveis, sinceramente frágeis. Sem encenação, afloremo-nos em múltiplas personalidades. Mudemos de opinião como se muda de roupa. Sejamos escravos da ocasião, mutantes, prontos para dissolver-se na massa comum, sem garantias e sem certezas. Viva às muitas pequenas coisas que dão certo. Joguemos fora a vontade de descobrir novos horizontes, ter idéias brilhantes e fazer parte da historia. Por uma sociedade sem anseios, sem planos, sem inspiração, que evolua sem pressa. Trabalhemos apenas o bom senso e nossa capacidade de discernimento. E isso basta.

17.2.06

Ele estava exausto, cuspido, desprezado, ressacado, enjoado, vomitando a imundice graciosa que embebeda a vida e que agora lhe fazia doer a cabeça e contorcer-lhe as tripas. Era o fedor que impregnava o ambiente que ocupara nos últimos 10 anos. O cheiro da humanidade, da imundice, da humandice. O cheiro da vida crua.

Dessa vez exagerei na dose, deve ter pensado. Virou-se pra garota que acabara de amar e disse: vou sumir por um tempo.

Ele sumiu.
Alguns sentiram sua falta, mas não muita.

Testemunhar eventos extraordinários é uma dádiva para poucos. Geralmente a pessoa que presencia um evento singular sente-se feliz por estar, de certa forma, íntima do absurdo; próxima de uma força maior incompreensível e provocadora que escancara, apenas para ela, como um outdoor: existe algo mais!.

A garota sentiu-se feliz por testemunhar um autêntico sumiço. Foi um satori, um golpe na cabeça que a fez acordar. Ao vê-lo sumir na sua frente conforme sua vontade, vislumbrou o tamanho de sua ignorância e insignificância perante o absurdo. Testemunhou algo grandioso, infinitamente maior que ela; e esse sentimento de cumplicidade, de compartilhar com a existência uma experiência que está fora de sua razão, lhe libertou. Voltou-se para os demais que estavam alheios e despediu-se com leve sorriso. Ali não havia mais nada pra ela.

Com o peito fervilhando de emoção, ele se deliciava com os prazeres das coisas boas e más; lambuzava-se de crueldade e em seguida chorava as dores dos outros lhes afagando as carnes. Morria e ressuscitava infinitas vezes no ciclo insaciável do desejo. Apesar de ter dado um basta e decidido sumir, admitiu ser por um tempo. Ele, mais que ninguém, conhece a força de seu vício e não pretende desafiá-lo; tem consciência de sua prisão.

A maioria dos que ficaram, continuaram no frenesi de intermináveis orgias que ocupavam suas vidas exuberantes. Morreram felizes e vomitando.

12.11.05

sobre limites e nossa capacidade de falar merda

"Ontem é ontem. Amanhã é amanhã. Impossível dizer que amanhã será amanhã uma vez que amanhã será hoje, assim como ontem foi hoje, ok?" – esse escrito, brilhantemente traduzido, foi encontrado em escavações arqueológicas nas proximidades de Laguna Papone por pesquisadores colombianos e representa apenas uma das levianas questões levantadas pelos atuais habitantes de um pequeno povoado localizado num lugarzinho chamado Locas Vistosas, situado na linha do equador, caracterizados justamente por serem unidimensionais e, portanto, possuírem rasa compreensão.

A população de Locas Vistosas é um povo humilde que vivenciou fatos extraordinários dignos de enlouquecer toda uma civilização e que hoje são estudados a cabo por intelectuais do mundo inteiro na tentativa de compreenderem que fim levou a civilização de Laguna, prima distante desses remanescentes singulares.

Para entender essa intrigante extinção, se é necessário levar em consideração as peculiaridades que algumas regiões da linha do equador possuem. Por exemplo, sabe-se que devido à distribuição de massa da Terra, o equador terrestre se move a uma impressionante velocidade de 1.674 km/h, bem maior que a velocidade do som quando propagado no ar, que é de 1.224 km/h. Devido a esse fato curioso, existe na região do equador uma espécie de horizonte de eventos para o som, onde tudo que estiver a leste do ponto de origem do som fica inevitavelmente no silêncio e tudo que estiver a oeste é atingido 2 vezes pelas ondas sonoras, provocando um estranho efeito de eco. O primeiro barulho é rápido e agudo enquanto o segundo é mais lento e grave. Isto explica o curioso sistema de comunicação e linguajar utilizados pelos laguneses, hoje preservados pelos locasvistosenos nos rituais de devoção, e também a sua incrível capacidade de determinar a distância exata em que se encontra a origem do som apenas calculando instintivamente o tempo que se passa entre o som e o seu eco, uma espécie de radar passivo.

Sabe-se também que, por volta de 1250, algumas comunidades de laguneses tentaram se distanciar da linha do equador, procurando lugares onde a velocidade de rotação seria menor que a do som, ansiosos em experimentar novos mundos da comunicação. Então desgraçadamente rumaram para o sul até ultrapassarem o trópico e atingirem a latitude aproximada de 24º12’, uma latitude cuja velocidade de rotação se iguala à velocidade do som, fazendo com que parte da voz emitida pelos compadres permanecesse nas proximidades das cordas vocais, reverberando intensamente a cabeça, induzindo derrames e provocando mortes. Parte da voz simplesmente não saia do lugar. Quando essas criaturas tentavam falar, elas ouviam inúmeros estrondos internos e a doença da loucura começava a abraçá-los carinhosamente e sempre com ironia. A partir daí essa região ficou conhecida como a Planície Estoura Cabeças e até os dias de hoje ela é evitada pelos deficientes de sentido.

Após sofrerem durante vários meses o efeito Estoura Cabeças, as comunidades nômades de laguneses, já sem um pedaço grande de nexo, espalharam-se em várias direções, formando tribos rasas; algumas mais ao sul, outras mais ao norte, mas ninguém quis voltar ao seu antigo lar, a linha do equador. Então, por volta do início do século XV, veio o fato decisivo, o golpe impiedoso que selou o destino cruel desse povo perdido em loucura. A invenção do vaso sanitário com descarga.

Os curiosos laguneses perceberam que a água do vaso sanitário girava em sentido horário nas comunidades do hemisfério sul e no sentido anti-horário nas comunidades do hemisfério norte (por causa da força de Coriolis) e ficaram obcecados por esse fato. Então os 3 maiores chefes de tribos fizeram uma aposta: quem adivinhasse em qual sentido a água de um vaso situado na linha do equador girava, seria dono de todas as terras fronteiriças. Um apostou no sentido horário, outro apostou no sentido anti-horário e o terceiro apostou que a água desceria sem girar. Em plena latitude 0, todos os presentes espectadores e testemunhas dessa aposta histórica romperam de vez com a linha que delimita a razão da insanidade... a água simplesmente não desceu.

15.7.05

Estranho Lugar

Estranho Lugar (nov-2004)

No mais confuso espaço, quase opaco por inteiro, apenas uma fugaz luz um tanto ofuscada tentava iluminar a área que graças à bizarra geometria do lugar se repetia infinitamente dando a impressão de ser muitas luzes. O aspecto era fantasmagórico. Havia espaços esbranquecidos e acinzentados, nos mais variados tons e nos mais variados volumes. Quanto mais branco a área mais quente era. À medida que avançava percebi o quanto era difícil, na verdade impossível (pelo menos pra mim), caminhar em linha reta. Era preciso caminhar seguindo a geometria torta do lugar por meio de tombos. Com apenas um tombo era possível percorrer uma distância equivalente a 5 passos pelo menos. Depois de acostumado com este tipo de locomoção, conseguia tombar uns 15 ou 20 passos de uma só vez. Com dificuldade, ainda me acostumando com o mal-estar que estes saltos toscos me provocavam, consegui me aproximar de um dos pontos luminosos refletidos para ver de perto sua origem. Porém, à medida que eu me aproximava do lugar, uma massa esbranquecida de luz que envolvia o local e parecia fixada para sempre no tempo, estática, começava a queimar meu corpo de dentro pra fora com tamanha violência que em rápidos momentos eu saía de mim mesmo e conseguia ver as arestas. Tombei imediatamente para baixo, onde havia uma área menos ofuscante, mas não o suficientemente cinza para diminuir consideravelmente esta dor. Procurei pelos lugares mais escuros e pelas ausências dinâmicas, mas não conseguia ver direito. Foi enlouquecedor, pois queimava não só o corpo, mas também a mente e a alma. E foi nesse desespero, nessa queimação contínua e insuportável que minha mente atingiu o ponto de ebulição e começou a deteriorar-se. Fui perdendo a memória. Primeiro, foram os momentos felizes e infelizes de minha vida, depois, as lembranças periféricas e por último, todos os momentos indiferentes. Eu começava a deixar de existir. Não compreendia, não conseguia entender este fim. Gritei. Supliquei por perdão e outras coisas sem sentido. Xinguei. Mas não havia ninguém pra me ouvir. Chorei. E quando chegava a hora de me virar pelo avesso, vi um pequeno espaço negro, sem luz alguma atravessando seu instante, numa área graciosamente assimétrica que permitia essa singularidade. Era minha última chance. Com muito esforço, consegui tombar pros dois lados ao mesmo tempo, atravessando grandes espaços cinzas até atingir o volume completamente escuro. O alívio veio de imediato embora tenha durado poucos segundos. Ao invés de calor, comecei então a queimar de frio. Os fragmentos agora vinham pela falta e não pelo excesso. Encolhi-me, abracei-me. Alimentei-me do que sobrou de mim mesmo na tentativa vã de evitar uma completa inanição. Enxergava apenas a escuridão. Embora tudo estivesse negro, sabia que todos os tons de cinza, os brancos e os pontos de luz que se repetiam ainda estavam ali perto. Não conseguia mais me mover. Pernas e braços não respondiam. As lágrimas que escorriam se cristalizavam antes mesmo de tocarem meus lábios. Então perdi os sentidos. E depois minha identidade, ou o que restava dela. Da memória só restaram cacos e entulhos, peças incompletas e desordenadas que após muito tempo consegui juntá-las para formar algumas lembranças presentes, as mais recentes aos quais acabei de relatar, e desde sempre as venho repetindo e repetindo continuamente como um mantra, na tentativa de manter-me aquecido.

21.6.05

O Grande Artista

A Arte de Ter Razão é um pequeno tratado sobre dialética erística que reúne 38 estratagemas descritos por Schopenhauer que podem ser utilizados como meios de se obter a razão em qualquer disputa de idéias. Utilizando-se desses artifícios procura-se obter a vitória de uma disputa independente da verdade objetiva das coisas; mesmo que não se tenha realmente a razão (e ainda consciente disso), pode-se ter a validade na aprovação dos ouvintes. E aqueles que se dedicam de fato, tornam-se verdadeiros mestres na arte de alcançar a aparência da verdade.

De maneira geral, numa disputa, os participantes não lutam pela verdade, mas em defesa de suas próprias teses, pois, no princípio, nem eles nem ninguém têm a certeza de onde está a verdade, até que se chegue a um fim. Mesmo quando somos convencidos pelos argumentos do adversário, é comum depois acharmos que no fundo tínhamos razão, por isso somos muitas vezes tentados à desonestidade numa disputa, persistindo numa proposição que nos parece falsa até que se esgotem todas as nossas possibilidades.

Para Schopenhauer, “a vaidade inata não quer que nossa afirmação resulte falsa e a do adversário, correta. Se fosse assim, cada um deveria meramente esforçar-se para julgar apenas de modo justo. Porém, à vaidade inata associam-se, na maioria dos indivíduos, uma verbosidade também inata e uma desonestidade também inata”.

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Um dos meus passa-tempos televisivos favoritos no momento, perdendo apenas pro Pânico na TV e, obviamente, 24h, é acompanhar ao vivo, na TV Câmara, o desenrolar dos escândalos políticos na CPMI dos Correios, que na verdade vai muito além do caso dos Correios, escancarando aos olhos de todos as engrenagens podres que fazem funcionar a estrutura do poder vigente hoje no Brasil. Recomendo esse programa a todos os cidadãos, não por causa da necessidade cívica de manter atualizada sua consciência política, mas sim por causa de sua dose escrachada de humor circense e, principalmente, pelo caráter didático que raramente se encontra numa televisão brasileira. Por exemplo: pra quem assistiu o depoimento de Roberto Jefferson ao Conselho de Ética da Câmara presenciou uma verdadeira aula de dialética erística, com direito ao uso de diversos dos estratagemas esmiuçados por Schop em sua Arte de Ter Razão. Foi engraçado ver Roberto se sair de argumentações concisas e aparentemente corretas por meio de ‘deboches convincentes’ e ter refutado teses simplesmente assumindo sua falsidade. É fato que ele é um mestre nessa arte e une todos os seus dons de retórica, dialética, oratória e expressão facial/corporal para persuadir e encantar a nós, os espectadores. Jogando seus petitio principii e mutatio controversiae acabou encantando a mim, mesmo sabendo de suas filhasdaputices dos tempos de collor até os dias de hoje; mesmo sabendo que ele não tinha outra alternativa além de assumir seus erros e tentar mostrar que é assim que funciona com todo mundo, que todos são igualmente escroques. Ele encantou a mim pela bizarrice da situação. Foi bizarro ver um corrupto assumir ser corrupto na maior naturalidade e carisma do mundo, aparentando ainda ter razão. Interessante ouvir e ver seus discursos cujos estratagemas visam atacar o Sistema como um todo: foi o Sistema que o corrompeu e não o contrário. Sua atuação foi impecável, digno de um Oscar, e digo mais: talvez ele esteja certo em suas proposições tendo em vista os fortes indícios de desvio de conduta dos mais recentes hipócritas senhores do poder, até então guardiões da ética; ou talvez esteja apenas brincando conosco. Paradoxalmente, de maneira forçada e nada autêntica, Roberto Jefferson é hoje o homem mais sincero da política brasileira. É também um grande artista; de absurdum a absurdum, ele pode acabar triunfando como um mártir.

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A Arte de Ter Razão é uma obra póstuma, pois infelizmente (ou felizmente), Schopenhauer não a concluiu e tinha desistido de publicá-la pelos seguintes motivos relatados:

“Reuni os artifícios desonestos mais recorrentes nas controvérsias e representei claramente cada um deles na sua peculiaridade, ilustrando-o com exemplos e atribuindo-lhe um nome; por fim, acrescentei também os meios a serem utilizados contra tais artifícios, por assim dizer as defesas contra tais simulações; o resultado foi uma verdadeira dialética erística... Porém, na revisão ora empreendida desse meu trabalho passado, acho que um estudo tão exaustivo e minucioso das vias indiretas e dos truques de que se vale a natureza humana comum para ocultar seus defeitos não é mais conforme ao meu temperamento, e, por isso, deixo-o de lado (...) Eu havia, portanto, reunido e desenvolvido cerca de quarenta desses estratagemas. Mas pôr-me agora a ilustrar todas essas escapatórias da limitação e da incapacidade, irmãs da obtusidade, da vaidade e da desonestidade, causa-me náuseas; por isso, detenho-me nestes ensaios e ressalto com energia ainda maior as razões alegadas acima, para que evitem as discussões com pessoas como quase todos são”.

29.5.05

Ta lá. São 5 ases em jogo. Todos já sabem e continuam apostando carícias nesse jogo de blefes. A mesa cheia de lemmings espiões faz do azar ser pouco nesse jogo de azar que não deixa escapar do vício nenhum coitado inocente. Com bom naipe na mão se arrisca tudo. Ouro mata 3 paus ou 2 espadas. Copas matam todos. Com damas de copas nas mãos a rodada está quase ganha se um ás não atrapalhar sua vida claro, ou se um lemming de confiança não lhe passar a perna.