Começou bem cedo. tinha poucas semanas de vida quando dei de cara com o que seria o meu maior desejo não fisiológico. logo após saciada a fome, relaxava de barriga para cima naquela prisão a que chamavam de berço, mas que naquele momento era suficiente para conter meu mundo consciente e imediatista. naquela época eu mal conseguia me mexer. minha coordenação era quase aleatória e eu estava nas primeiras fases do raciocínio, ainda varrendo as sinapses com a lógica binária da causa-efeito, de estar ou não com fome, de estar ou não com sono, de tentativa e erro, de ação e reação. um-zero, ligado-desligado. é assim que aprendemos desde que nascemos, por instinto, por tentativa e erro, utilizando o gatilho que alterna do estado zero para o estado um, que tem o poder de nos trazer comida e conforto, trazer um banho, uma música de ninar e tudo o que é bom e sagrado. essa chave primordial, como se sabe, é o choro mais estridente que conseguimos fazer.
Bem diferente da noção de mundo que tivemos no berço anterior, dentro do Ser Supremo, uma caverna que não achava nem pequena nem grande, mas completa em si, pois não conhecia nada além. aquilo era tudo, não existia o 'lá fora', não havia dualidade, não havia zero e um, havia apenas a singularidade do todo e nada ao mesmo tempo. eu e a casa éramos o Todo.
Em poucos dias após a grande saída, já temos consciência do
poder do berro e começamos a usá-lo para outros objetivos além do raciocínio
binário da necessidade fisiológica básica. pois bem, era naquele momento de
estado zero, saciado, plenamente satisfeito em minha existência e feliz,
deitado sobre meus lençóis perfumados, que via dançar vagarosamente além do meu
alcance, lá no alto do céu, pequenas formas, ainda nubladas, aninhadas em
círculo, cadenciadas sob uma música agradavelmente hipnótica que emitia uma
ordem subconscientemente clara: suas pálpebras estão pesadas, meu querido,
fecha teus olhos e durma! e eu sonhava com aquelas imagens, com aquela música,
com aquilo que ainda não sabia de onde vinha, nem o que era, mas que eu
definitivamente gostava.
Quase sempre quando eu acordava estava em
"estado um" de fome e disparava novamente o gatilho do berro: hora de
comer. nesse momento precioso, o momento de ser suspenso pelas mãos do Ser Superior e de ser retirado do berço para a amamentação, meu choro cessava,
por um breve período, o suficiente para me concentrar e fazer meus olhos
resvalarem de lado para fisgar de relance as formas coloridas que, devido à
súbita proximidade, elas pareciam mais nítidas e mais lindas e mais desejadas.
E então fui crescendo. primeiro consegui sustentar
o próprio peso da cabeça, depois levantei o tronco com a força dos braços, e
logo estava coordenando o movimento dos braços com os das pernas e logo estava
segurando as barras do berço e ficando de pé... de pé, olhava para cima e lá
estava o carrossel, lento, cadenciado, caleidoscopidal de formas e cores e
músicas oníricas que lançavam morfina em meus olhos. à medida que ia crescendo,
controlando melhor os movimentos do braço, conseguia por vezes triscar com a
ponta dos dedos os objetos que compõem esse carrossel. lembro como foi
extasiante poder triscar meu objeto de desejo pela primeira vez. foi tanta
emoção que não chorei mais por comida, chorei por ele.
Vale ressaltar que somos criaturas viciadas em
estímulos. se você não sabe, nascemos com os sentidos misturados, ou seja, o
som pode ter cor, as cores e formas podem emitir sons e sabores e vice-versa, o
que torna as experiências bem mais interessantes.
Pausa. longos e estimulantes dias se passaram, estou maiorzinho e minha visão menos borrada. vejo com mais nitidez as formas carinhosamente curvilíneas dos objetos pendurados na estrutura superior do berço. disseram-me que são peixinhos. muito lindos e sedutores. o prazer de passar horas mirando-os é suplantado aos poucos pela ansiedade de tocá-los e mordê-los, e o desejo crescia mais e mais. e então, com um movimento braçal rápido interagi com o objeto e numa explosão de felicidade finalmente consegui tê-lo comigo no berço, cheirando, mordendo e dormindo abraçado com os peixinhos, sonhando com os peixinhos, mas dessa vez sem música e sem movimentos, pois separei os peixes da nave-mãe que os fazia girar e tocar aquela música que hoje já soa irritante. e aí uma nova experiência me ocorreu, logo agora que eu finalmente o tinha, a curva de interesse declinou rapidamente e meu desejo saciado se transformou em tédio. o maior desejo da minha vida se transformou em tédio em questão de minutos! mas aí um Ser Supremo me entregou um novo e fascinante objeto...
**
Desde pequeno nos ensinaram a compreender e dominar nosso corpo físico, mas pouco ou nada nos educam sobre a mente e o domínio da nossa consciência. E assim, dia a dia, ano após ano, década após década, crescemos e morremos aprisionados aos sentidos. E é justamente por isso que somos facilmente manipulados por ilusionistas.
(22/01/2020)