12.11.05

sobre limites e nossa capacidade de falar merda

"Ontem é ontem. Amanhã é amanhã. Impossível dizer que amanhã será amanhã uma vez que amanhã será hoje, assim como ontem foi hoje, ok?" – esse escrito, brilhantemente traduzido, foi encontrado em escavações arqueológicas nas proximidades de Laguna Papone por pesquisadores colombianos e representa apenas uma das levianas questões levantadas pelos atuais habitantes de um pequeno povoado localizado num lugarzinho chamado Locas Vistosas, situado na linha do equador, caracterizados justamente por serem unidimensionais e, portanto, possuírem rasa compreensão.

A população de Locas Vistosas é um povo humilde que vivenciou fatos extraordinários dignos de enlouquecer toda uma civilização e que hoje são estudados a cabo por intelectuais do mundo inteiro na tentativa de compreenderem que fim levou a civilização de Laguna, prima distante desses remanescentes singulares.

Para entender essa intrigante extinção, se é necessário levar em consideração as peculiaridades que algumas regiões da linha do equador possuem. Por exemplo, sabe-se que devido à distribuição de massa da Terra, o equador terrestre se move a uma impressionante velocidade de 1.674 km/h, bem maior que a velocidade do som quando propagado no ar, que é de 1.224 km/h. Devido a esse fato curioso, existe na região do equador uma espécie de horizonte de eventos para o som, onde tudo que estiver a leste do ponto de origem do som fica inevitavelmente no silêncio e tudo que estiver a oeste é atingido 2 vezes pelas ondas sonoras, provocando um estranho efeito de eco. O primeiro barulho é rápido e agudo enquanto o segundo é mais lento e grave. Isto explica o curioso sistema de comunicação e linguajar utilizados pelos laguneses, hoje preservados pelos locasvistosenos nos rituais de devoção, e também a sua incrível capacidade de determinar a distância exata em que se encontra a origem do som apenas calculando instintivamente o tempo que se passa entre o som e o seu eco, uma espécie de radar passivo.

Sabe-se também que, por volta de 1250, algumas comunidades de laguneses tentaram se distanciar da linha do equador, procurando lugares onde a velocidade de rotação seria menor que a do som, ansiosos em experimentar novos mundos da comunicação. Então desgraçadamente rumaram para o sul até ultrapassarem o trópico e atingirem a latitude aproximada de 24º12’, uma latitude cuja velocidade de rotação se iguala à velocidade do som, fazendo com que parte da voz emitida pelos compadres permanecesse nas proximidades das cordas vocais, reverberando intensamente a cabeça, induzindo derrames e provocando mortes. Parte da voz simplesmente não saia do lugar. Quando essas criaturas tentavam falar, elas ouviam inúmeros estrondos internos e a doença da loucura começava a abraçá-los carinhosamente e sempre com ironia. A partir daí essa região ficou conhecida como a Planície Estoura Cabeças e até os dias de hoje ela é evitada pelos deficientes de sentido.

Após sofrerem durante vários meses o efeito Estoura Cabeças, as comunidades nômades de laguneses, já sem um pedaço grande de nexo, espalharam-se em várias direções, formando tribos rasas; algumas mais ao sul, outras mais ao norte, mas ninguém quis voltar ao seu antigo lar, a linha do equador. Então, por volta do início do século XV, veio o fato decisivo, o golpe impiedoso que selou o destino cruel desse povo perdido em loucura. A invenção do vaso sanitário com descarga.

Os curiosos laguneses perceberam que a água do vaso sanitário girava em sentido horário nas comunidades do hemisfério sul e no sentido anti-horário nas comunidades do hemisfério norte (por causa da força de Coriolis) e ficaram obcecados por esse fato. Então os 3 maiores chefes de tribos fizeram uma aposta: quem adivinhasse em qual sentido a água de um vaso situado na linha do equador girava, seria dono de todas as terras fronteiriças. Um apostou no sentido horário, outro apostou no sentido anti-horário e o terceiro apostou que a água desceria sem girar. Em plena latitude 0, todos os presentes espectadores e testemunhas dessa aposta histórica romperam de vez com a linha que delimita a razão da insanidade... a água simplesmente não desceu.

15.7.05

Estranho Lugar

Estranho Lugar (nov-2004)

No mais confuso espaço, quase opaco por inteiro, apenas uma fugaz luz um tanto ofuscada tentava iluminar a área que graças à bizarra geometria do lugar se repetia infinitamente dando a impressão de ser muitas luzes. O aspecto era fantasmagórico. Havia espaços esbranquecidos e acinzentados, nos mais variados tons e nos mais variados volumes. Quanto mais branco a área mais quente era. À medida que avançava percebi o quanto era difícil, na verdade impossível (pelo menos pra mim), caminhar em linha reta. Era preciso caminhar seguindo a geometria torta do lugar por meio de tombos. Com apenas um tombo era possível percorrer uma distância equivalente a 5 passos pelo menos. Depois de acostumado com este tipo de locomoção, conseguia tombar uns 15 ou 20 passos de uma só vez. Com dificuldade, ainda me acostumando com o mal-estar que estes saltos toscos me provocavam, consegui me aproximar de um dos pontos luminosos refletidos para ver de perto sua origem. Porém, à medida que eu me aproximava do lugar, uma massa esbranquecida de luz que envolvia o local e parecia fixada para sempre no tempo, estática, começava a queimar meu corpo de dentro pra fora com tamanha violência que em rápidos momentos eu saía de mim mesmo e conseguia ver as arestas. Tombei imediatamente para baixo, onde havia uma área menos ofuscante, mas não o suficientemente cinza para diminuir consideravelmente esta dor. Procurei pelos lugares mais escuros e pelas ausências dinâmicas, mas não conseguia ver direito. Foi enlouquecedor, pois queimava não só o corpo, mas também a mente e a alma. E foi nesse desespero, nessa queimação contínua e insuportável que minha mente atingiu o ponto de ebulição e começou a deteriorar-se. Fui perdendo a memória. Primeiro, foram os momentos felizes e infelizes de minha vida, depois, as lembranças periféricas e por último, todos os momentos indiferentes. Eu começava a deixar de existir. Não compreendia, não conseguia entender este fim. Gritei. Supliquei por perdão e outras coisas sem sentido. Xinguei. Mas não havia ninguém pra me ouvir. Chorei. E quando chegava a hora de me virar pelo avesso, vi um pequeno espaço negro, sem luz alguma atravessando seu instante, numa área graciosamente assimétrica que permitia essa singularidade. Era minha última chance. Com muito esforço, consegui tombar pros dois lados ao mesmo tempo, atravessando grandes espaços cinzas até atingir o volume completamente escuro. O alívio veio de imediato embora tenha durado poucos segundos. Ao invés de calor, comecei então a queimar de frio. Os fragmentos agora vinham pela falta e não pelo excesso. Encolhi-me, abracei-me. Alimentei-me do que sobrou de mim mesmo na tentativa vã de evitar uma completa inanição. Enxergava apenas a escuridão. Embora tudo estivesse negro, sabia que todos os tons de cinza, os brancos e os pontos de luz que se repetiam ainda estavam ali perto. Não conseguia mais me mover. Pernas e braços não respondiam. As lágrimas que escorriam se cristalizavam antes mesmo de tocarem meus lábios. Então perdi os sentidos. E depois minha identidade, ou o que restava dela. Da memória só restaram cacos e entulhos, peças incompletas e desordenadas que após muito tempo consegui juntá-las para formar algumas lembranças presentes, as mais recentes aos quais acabei de relatar, e desde sempre as venho repetindo e repetindo continuamente como um mantra, na tentativa de manter-me aquecido.

21.6.05

O Grande Artista

A Arte de Ter Razão é um pequeno tratado sobre dialética erística que reúne 38 estratagemas descritos por Schopenhauer que podem ser utilizados como meios de se obter a razão em qualquer disputa de idéias. Utilizando-se desses artifícios procura-se obter a vitória de uma disputa independente da verdade objetiva das coisas; mesmo que não se tenha realmente a razão (e ainda consciente disso), pode-se ter a validade na aprovação dos ouvintes. E aqueles que se dedicam de fato, tornam-se verdadeiros mestres na arte de alcançar a aparência da verdade.

De maneira geral, numa disputa, os participantes não lutam pela verdade, mas em defesa de suas próprias teses, pois, no princípio, nem eles nem ninguém têm a certeza de onde está a verdade, até que se chegue a um fim. Mesmo quando somos convencidos pelos argumentos do adversário, é comum depois acharmos que no fundo tínhamos razão, por isso somos muitas vezes tentados à desonestidade numa disputa, persistindo numa proposição que nos parece falsa até que se esgotem todas as nossas possibilidades.

Para Schopenhauer, “a vaidade inata não quer que nossa afirmação resulte falsa e a do adversário, correta. Se fosse assim, cada um deveria meramente esforçar-se para julgar apenas de modo justo. Porém, à vaidade inata associam-se, na maioria dos indivíduos, uma verbosidade também inata e uma desonestidade também inata”.

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Um dos meus passa-tempos televisivos favoritos no momento, perdendo apenas pro Pânico na TV e, obviamente, 24h, é acompanhar ao vivo, na TV Câmara, o desenrolar dos escândalos políticos na CPMI dos Correios, que na verdade vai muito além do caso dos Correios, escancarando aos olhos de todos as engrenagens podres que fazem funcionar a estrutura do poder vigente hoje no Brasil. Recomendo esse programa a todos os cidadãos, não por causa da necessidade cívica de manter atualizada sua consciência política, mas sim por causa de sua dose escrachada de humor circense e, principalmente, pelo caráter didático que raramente se encontra numa televisão brasileira. Por exemplo: pra quem assistiu o depoimento de Roberto Jefferson ao Conselho de Ética da Câmara presenciou uma verdadeira aula de dialética erística, com direito ao uso de diversos dos estratagemas esmiuçados por Schop em sua Arte de Ter Razão. Foi engraçado ver Roberto se sair de argumentações concisas e aparentemente corretas por meio de ‘deboches convincentes’ e ter refutado teses simplesmente assumindo sua falsidade. É fato que ele é um mestre nessa arte e une todos os seus dons de retórica, dialética, oratória e expressão facial/corporal para persuadir e encantar a nós, os espectadores. Jogando seus petitio principii e mutatio controversiae acabou encantando a mim, mesmo sabendo de suas filhasdaputices dos tempos de collor até os dias de hoje; mesmo sabendo que ele não tinha outra alternativa além de assumir seus erros e tentar mostrar que é assim que funciona com todo mundo, que todos são igualmente escroques. Ele encantou a mim pela bizarrice da situação. Foi bizarro ver um corrupto assumir ser corrupto na maior naturalidade e carisma do mundo, aparentando ainda ter razão. Interessante ouvir e ver seus discursos cujos estratagemas visam atacar o Sistema como um todo: foi o Sistema que o corrompeu e não o contrário. Sua atuação foi impecável, digno de um Oscar, e digo mais: talvez ele esteja certo em suas proposições tendo em vista os fortes indícios de desvio de conduta dos mais recentes hipócritas senhores do poder, até então guardiões da ética; ou talvez esteja apenas brincando conosco. Paradoxalmente, de maneira forçada e nada autêntica, Roberto Jefferson é hoje o homem mais sincero da política brasileira. É também um grande artista; de absurdum a absurdum, ele pode acabar triunfando como um mártir.

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A Arte de Ter Razão é uma obra póstuma, pois infelizmente (ou felizmente), Schopenhauer não a concluiu e tinha desistido de publicá-la pelos seguintes motivos relatados:

“Reuni os artifícios desonestos mais recorrentes nas controvérsias e representei claramente cada um deles na sua peculiaridade, ilustrando-o com exemplos e atribuindo-lhe um nome; por fim, acrescentei também os meios a serem utilizados contra tais artifícios, por assim dizer as defesas contra tais simulações; o resultado foi uma verdadeira dialética erística... Porém, na revisão ora empreendida desse meu trabalho passado, acho que um estudo tão exaustivo e minucioso das vias indiretas e dos truques de que se vale a natureza humana comum para ocultar seus defeitos não é mais conforme ao meu temperamento, e, por isso, deixo-o de lado (...) Eu havia, portanto, reunido e desenvolvido cerca de quarenta desses estratagemas. Mas pôr-me agora a ilustrar todas essas escapatórias da limitação e da incapacidade, irmãs da obtusidade, da vaidade e da desonestidade, causa-me náuseas; por isso, detenho-me nestes ensaios e ressalto com energia ainda maior as razões alegadas acima, para que evitem as discussões com pessoas como quase todos são”.

29.5.05

Ta lá. São 5 ases em jogo. Todos já sabem e continuam apostando carícias nesse jogo de blefes. A mesa cheia de lemmings espiões faz do azar ser pouco nesse jogo de azar que não deixa escapar do vício nenhum coitado inocente. Com bom naipe na mão se arrisca tudo. Ouro mata 3 paus ou 2 espadas. Copas matam todos. Com damas de copas nas mãos a rodada está quase ganha se um ás não atrapalhar sua vida claro, ou se um lemming de confiança não lhe passar a perna.