21.6.05

O Grande Artista

A Arte de Ter Razão é um pequeno tratado sobre dialética erística que reúne 38 estratagemas descritos por Schopenhauer que podem ser utilizados como meios de se obter a razão em qualquer disputa de idéias. Utilizando-se desses artifícios procura-se obter a vitória de uma disputa independente da verdade objetiva das coisas; mesmo que não se tenha realmente a razão (e ainda consciente disso), pode-se ter a validade na aprovação dos ouvintes. E aqueles que se dedicam de fato, tornam-se verdadeiros mestres na arte de alcançar a aparência da verdade.

De maneira geral, numa disputa, os participantes não lutam pela verdade, mas em defesa de suas próprias teses, pois, no princípio, nem eles nem ninguém têm a certeza de onde está a verdade, até que se chegue a um fim. Mesmo quando somos convencidos pelos argumentos do adversário, é comum depois acharmos que no fundo tínhamos razão, por isso somos muitas vezes tentados à desonestidade numa disputa, persistindo numa proposição que nos parece falsa até que se esgotem todas as nossas possibilidades.

Para Schopenhauer, “a vaidade inata não quer que nossa afirmação resulte falsa e a do adversário, correta. Se fosse assim, cada um deveria meramente esforçar-se para julgar apenas de modo justo. Porém, à vaidade inata associam-se, na maioria dos indivíduos, uma verbosidade também inata e uma desonestidade também inata”.

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Um dos meus passa-tempos televisivos favoritos no momento, perdendo apenas pro Pânico na TV e, obviamente, 24h, é acompanhar ao vivo, na TV Câmara, o desenrolar dos escândalos políticos na CPMI dos Correios, que na verdade vai muito além do caso dos Correios, escancarando aos olhos de todos as engrenagens podres que fazem funcionar a estrutura do poder vigente hoje no Brasil. Recomendo esse programa a todos os cidadãos, não por causa da necessidade cívica de manter atualizada sua consciência política, mas sim por causa de sua dose escrachada de humor circense e, principalmente, pelo caráter didático que raramente se encontra numa televisão brasileira. Por exemplo: pra quem assistiu o depoimento de Roberto Jefferson ao Conselho de Ética da Câmara presenciou uma verdadeira aula de dialética erística, com direito ao uso de diversos dos estratagemas esmiuçados por Schop em sua Arte de Ter Razão. Foi engraçado ver Roberto se sair de argumentações concisas e aparentemente corretas por meio de ‘deboches convincentes’ e ter refutado teses simplesmente assumindo sua falsidade. É fato que ele é um mestre nessa arte e une todos os seus dons de retórica, dialética, oratória e expressão facial/corporal para persuadir e encantar a nós, os espectadores. Jogando seus petitio principii e mutatio controversiae acabou encantando a mim, mesmo sabendo de suas filhasdaputices dos tempos de collor até os dias de hoje; mesmo sabendo que ele não tinha outra alternativa além de assumir seus erros e tentar mostrar que é assim que funciona com todo mundo, que todos são igualmente escroques. Ele encantou a mim pela bizarrice da situação. Foi bizarro ver um corrupto assumir ser corrupto na maior naturalidade e carisma do mundo, aparentando ainda ter razão. Interessante ouvir e ver seus discursos cujos estratagemas visam atacar o Sistema como um todo: foi o Sistema que o corrompeu e não o contrário. Sua atuação foi impecável, digno de um Oscar, e digo mais: talvez ele esteja certo em suas proposições tendo em vista os fortes indícios de desvio de conduta dos mais recentes hipócritas senhores do poder, até então guardiões da ética; ou talvez esteja apenas brincando conosco. Paradoxalmente, de maneira forçada e nada autêntica, Roberto Jefferson é hoje o homem mais sincero da política brasileira. É também um grande artista; de absurdum a absurdum, ele pode acabar triunfando como um mártir.

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A Arte de Ter Razão é uma obra póstuma, pois infelizmente (ou felizmente), Schopenhauer não a concluiu e tinha desistido de publicá-la pelos seguintes motivos relatados:

“Reuni os artifícios desonestos mais recorrentes nas controvérsias e representei claramente cada um deles na sua peculiaridade, ilustrando-o com exemplos e atribuindo-lhe um nome; por fim, acrescentei também os meios a serem utilizados contra tais artifícios, por assim dizer as defesas contra tais simulações; o resultado foi uma verdadeira dialética erística... Porém, na revisão ora empreendida desse meu trabalho passado, acho que um estudo tão exaustivo e minucioso das vias indiretas e dos truques de que se vale a natureza humana comum para ocultar seus defeitos não é mais conforme ao meu temperamento, e, por isso, deixo-o de lado (...) Eu havia, portanto, reunido e desenvolvido cerca de quarenta desses estratagemas. Mas pôr-me agora a ilustrar todas essas escapatórias da limitação e da incapacidade, irmãs da obtusidade, da vaidade e da desonestidade, causa-me náuseas; por isso, detenho-me nestes ensaios e ressalto com energia ainda maior as razões alegadas acima, para que evitem as discussões com pessoas como quase todos são”.