16.2.13

ALL IN


Telectac CLAK!

De tempos em tempos – não se pode dizer exatamente quais – um irritante barulho preenche a sala de um pobre casebre cujo velho morador sente narcísico prazer em explicar sua origem: “é meu cuco decodificador”, e aponta para uma engenhoca pendurada na parede, com suas engrenagens às mostras, suas válvulas e bojos de vidro e fluidos leves em seu interior. A julgar pela empolgação, foi ele mesmo quem a construiu. Lembra bem de longe uma estranha ampulheta. “Ele equaliza algebricamente a topologia interna da casa com a externa... Sabe, um relógio normal não funciona aqui”, explica, em vão, o velho de pele pálido-cinza e traços ornamentais, cujas rugas e sulcos dérmicos desenham curvas arabescas na face. Além de vestir um turbante, pinturas e maquiagem preta nos olhos completam o semblante árabe, descolado dos antigos califados mouros.  Visto de fora, seu casebre mágico é apenas uma palafita que adentra o mangue miseravelmente. Por dentro, igualmente miserável, um espaço geniosamente embaralhado num complexo origami temporal onde nem o mais poderoso clarividente e visionário seria capaz de arriscar palpites. E isto é fundamental para a reputação da casa já que, além de mim, outras três pessoas estão ali para jogar poker.

Borges, um homem muito rico, acostumado a ter tudo na vida, tem inclusive um belo de um melanoma metastásico que lhe dá pouquíssimo tempo de ser; Rômulo, um jovem inusitado de olhos cadentes que desde nascença é carente de atenção, cresceu a base de doses homeopáticas de carinho e sofisticou-se em burocracia, conquistando certo respeito por esforço próprio; e Cropulius, advogado de sucesso cujo esporte preferido é cuspir latim. Ama tanto expressar um data venia tal quanto um sommelier proferir acerca de taninos e chardonays amanteigados.

Sobre uma pequena bancada corroída por cupins, meia garrafa de conhaque abastece o copo de todos, além de um narguilè pequeno cujas ervas formam um amálgama de sabores alucinógenos. O velho metastásico, entre uma baforada e outra, sorri em agradecimento a este momento de trégua. O anfitrião serve de crupier. Seu sotaque e aparência definitivamente denunciam sua origem, aparentando outrora um poderoso vizir. Sua existência milenar, entretanto, denuncia algo mais.

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O jogo é agressivo, de apostas altas e ousadas. A certa altura, Borges, o moribundo, quase triplica suas fichas. Confiante e de sorriso faceiro, uma certa carta de um certo turn veio questionar a racionalidade probabilística e estimular o raciocínio espiralado de um belíssimo blefe – all in. Ele está blefando, ou apenas fingindo? Ou fingindo que está fingindo que está blefando? A excelência neste jogo está relacionada a quantas camadas se consegue aprofundar ao padrão de jogo dos adversários. Minha conclusão é que ele quer que acreditemos que ele esteja manipulando para que acreditemos que ele esteja fingindo que está blefando, ou seja, ele não está blefando. Cedo demais para desenhar perfis?

Tento vislumbrar impressões da próxima carta, reflexos do porvir, mas o origami do vizir confunde o traçado do tempo e limita nossa percepção. Tento identificar no velho microexpressões que denunciem algum receio, qualquer discreto repuxão no canto dos lábios, pequenas vibrações da pálpebra, breve dilatação da pupila, mas nada, o que vejo é um senhor relaxado e entorpecido. Desisto da mesa.

As quatro cartas abertas são 3♣ 3♠ K♠ 3♦. As tensões se elevam à ionosfera com o turn de três de ouros, dando pistas de quem tem dois reis nas mãos, um belo e inútil fullhouse diante de um vulgar four de três no qual supostamente o velho Borges brinca e delicia-se. Cigarros e charutos depositam cinzas aos montes e a fumaça se adensa de tal forma que seria possível tropeçar nela. O narguilé está agora com o crupier e os peixes mortos continuam a nos observar, um deles é Machaca-fish.

Após as desistências minha e do advogado, Rômulo, o ingênuo burocrata carente e inexperiente na arte do poker, paga todas suas fichas pra ver... Então, abrem-se as cartas. Borges começa a rir e tossir ao mesmo tempo, em êxtase, com seu (agora) evidente four. Rômulo continua inexpressivo, como quase sempre foi a vida toda. A última carta, o river, não muda o sentido da correnteza e Rômulo é derrotado com Carlos Magno e Júlio Cesar nas mãos. Borges maldiz seu oncologista e manda às favas seus cuidados médicos. Ao sair dali, milagrosamente seu câncer ter-se-á regredido. Cropulius dirige-se ao perdedor com seu jeito permanentemente cínico de ser - dura Lex sed Lex!

O Crupier pede silêncio e olha misericordiosamente pra Rômulo – todos olham pra Rômulo – que saca do bolso um envelope lacrado e endereçado e o entrega a mim. Por favor, é pra minha filha, diz.

O jogo de poker é o sumo, a quintessência, o extrato último da lógica perversa do egoísmo capitalista, onde só se ganha quando o outro perde. Só que aqui não apostamos dinheiro, não acumulamos ou perdemos riquezas; aqui apostamos nacos de vida. Ao segurar o envelope, senti uma estranha sensação de que aquilo tudo fora programado, como uma carta de despedida de um homem desesperado cuja consciência está prestes a dissolver-se. Os acontecimentos seguintes me causaram penosas náuseas.

Telectac CLAK!